segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O ÚLTIMO SORRISO de MANÉ BOCA RICA

Foi lá por quando Pelé fez os russos profetizarem ao mundo:
Camaradas! Cuidado Com Pelé !
Na vila dos sem eira nem beira, o povaréu via o jogo nas nuances do rádio, onde um locutor era prá sempre, nas vitórias e nas derrotas, e juravam que os vermelhos botaram as letras CCCP, só com meio tempo que o pretinho Gasolina tinha incendiado contra eles, e nem gol tinha feito.
No trem das onze, a gazeta sumiu, só se via as páginas alaranjadas disputadas a mãozadas.
Contra os asterix de Gales, Pelé deu um gOlé num beque plantado tal um menir do obelix, estáticos ele e o goleiro no um a zero final, e o dragão vermelho da bandeira deles, envergonhado, zarpou prá lua combater são jorge, que lá pelo menos dava briga.
A vila fervilhava de japão - novos, trazidos pelas boas novas kanjizadas daqui.
O armazém do pai fiava de tudo, enxadas, machados, roçadeiras, facões, limas e tudo prá lida dos bananais e roças, de botina ferrada com pregos para fincar no chão salobro, num pé de ferro que ferrar era função minha, os pregos a quilo ao gosto do freguês, chapéus de palha e ramenzoni, calças de brim farwest, peças de tecidos diversos que vinham dos texteis todos molengas e nós, eu e duas irmãs, se incumbíamos de esticar numas ripas de papelão duro e enrolar volta por volta, prá expor nas prateleiras da venda, alpercatas roda, tênis bamba e keds igual aos all star atuais, sapato de pneu e botas de borracha sete léguas, e encordoamento de violão e cavaquinho marca canário que ninguém era de ferro, prás rodas caipiras com sanfona e pandeiro nos arrasta pés.
A compra terminava nos garrafões de querosene, que ao encher de funil, fedia a mão, e obrigava a gente ensaboar com sabão de côco, lá no tanque da mãe.
Os japas compravam arroz e sardinha fresca, os nortistas farinha de mandioca e milho e jabá.
Cigarro tinha continental, ainda sem filtro, fulgor, finesse, macedonia, um de papel marron de gosto adocicado marca negritos. Fumo em corda, sêco, mais molhado, em rolos de trinta quilos.
Pai, quando chegava fardo de fumo novo, cortava e pesava de cem e duzentas gramas, media em dedos e marcava no saco de aniagem que recobria o rolo, cem gramas=cinco dedos, duzentas= 10 dedos.
Era o fast-fumo pros fins de semana corridos, e dias de chuva, quando a venda lotava, em oito não vencia atender e despachar, pai só correndo, povo chamando, seu Chogi, soma a conta, porque a boca miúda, quase murmúrio, pediam, marca seu Chogi, e ele nunca cobrava pinga e destilados, e pé de moleque, maria mole, suspiro, doce de abóbora ou cocada prás crianças em casa.
Eu gostava de vender charque, " dioguinho", chamavam errado na lógica nordestina de filho de, acrescia o inho," pega uma parte gorda, três partes de carne magra", aí eu tirava uma lasca e voltava do salãozão-depósito mordiscando, onde ficavam os pacotes de cigarro, os rolos de fumo em corda, as bebidas destiladas fortes, os conhaques palhinha e são joão da barra, o fernet dubar, e as enganosas doces, fogo paulista, anis e canelinha, que quando dava um porre no Pedro piruca, vinha dois filhos prá arrastar.
Foi nessa época que seu J. diretor da escola trouxe uma irmã que viuvou, de nome que hoje constrangeria muito, anagrama de mensagem da net, dona M. que trouxe uma filha galega alva tal talco chamada G.ka.
Dona M. ficou de substituta, e quando d. Palmira casou com seu Orfeu e se mudaram, efetivou na escola que já era grupo, tocava piano e se ofereceu prá dar aulas, de graça.
" Aproveito a mesma aula que dou prá G.ka, põe o menino, seu Chogi."
O pai tramou nos foles e belo dia, tava lá, uma 24 baixos novinha que cheirava a couro novo, com estojo e tudo.
Duas tardes por semana eu descia a rua única pros lados de baixo da vila, depois da estação, até o sobrado de seu J. e pouco via da pauta, as notas tal joaninhas pretas, alinhadas na clave de sol.
Eu ensaiava uma canção, que dona M. disse ser russa, ah! sei, aqui morou um russo que o trem pegou, chamada Olhos Negros, que eu prá decorar levei mais de mês.
G.ka acompanhava ao piano, a fresta de sol do reposteiro batia nos cabelos de palha de trigo que eu tinha visto nas folhinhas, a música triste para a menina mais triste de menos de dez anos que eu me lembre, dourando ao sol . Acho que foi aí que me destinei alegrar as loiras do resto da farta vida.
Depois da copa, Z. sensei, que tinha virado comerciante perto da praia, e atirava seus auxiliares balcão afora, e recolhia os para arrumar os ossos destroncados, 5º dan de karate que era, deu a boa nova na vila. Um pedido de sensei prá ensinar nihongô tinha resposta, o japa aportava em Santos, logo.
E onde montar a escola? N. san ofereceu um barracão de tábuas e cobertura de sapé, e hospedar o sensei, e com a vantagem de ser perto prá todo mundo, só longe, 4 kms, pro pessoal da vila, minoria, eu e mais uns dois.
Foi aí, dois meses depois, que começamos as aulas de hiragana, aqueles garranchos estranhos numa língua mais ainda, familiar prá maioria, que matraqueava com o sensei japão-novo, doido prá aprender portugues, com os rudimentos do de portugal e o sotaque idem, aprendidos no Nihon, palavras vagando no tempo que os jesuítas foram mortos , após armarem com armas de fogo um candidato a shogum que se cristianizou.
Pai, preocupado, não tá gostando, não, não sei quem é professor de quem, nós prá aprender nihongô ou o sensei aprender portugues, isso é que é ruim, em todas colonias à roda, eles ficam um ano, dois, quando acham que já sabem vão prá São Paulo ser tintureiros. Tenta mais um pouco, se não der, paciencia.
E linha acima, sol a pino, quando a gente via um brilho refletido, quem quer apostar uma tubaína que eu sei quem vem lá, a frente? Cê besta, seo! qualquer um sabe que é o boca rica, o mané!
S. Arakaki virou Mané Boca Rica, assim que chegou na vila, parente dos N. e batizado por seu Durvalino, chefe d'estação, na primeira baforada e no primeiro entreabrir dos dentes d' ouro pra soprar o Fulgor. A venda lotada, parou boquiaberta, tal demonstração ornada, d'um amarelo com uns 15 dentes encapados de igual tom.
E quando envelheceu a novidade, as apostas passaram prá, quantos dentes d' ouro, tem o Mané?
E tarde após tarde,revezando com o acordeon, eu ia linha trem acima, passava um pontilhão sobre um rio, divisa dos N. com os M. todos uchinanchús tal eu, adentrava o barracão onde a molecada fumava cigarros de sapé enrolados em papel de caderno.
Uma tarde eu mosqueei e o sensei flagrou soprando filigranas teto acima, berrou um pouco, botou de castigo de pé na frente ao lado da sua mesa de tábua rústica, desenhando o 4 co' uma perna cruzada apoiada na outra reta.
Ora, depois de uma certa hora, a posição do castigo é tortura, que fazia eu? alternava as pernas, artimanha que tava dando certo, até que ossamu, o mais filho, de rapariga cruzado com asno, dos japas dedou.
Aí teve jeito não. sensei disse que não sei isso e aquilo, e aí eu me mandei.
Pai, a paciencia foi sem ciencia.
N. san mitigava a sêde a beira do bananal, ô yoshôzinho, puruque indo imbora,shedo né? sensei não quer eu no nihongô, não entendo o que ele fala. puruque sensei é naichi ( da metrópole) non é uchinanchu ( okinawano) non fara uchinaguchi, bem diferente, né? Yoshôzinho fara munto burajirugô, né? fara munto, né! fara munto non bom! aturapaía nu nihongô.pauro fara poco. pauro in caja só fara nihongô.
sayonara, N.san,avisa Paulo que não venho mais na aula aqui, amanhã falo com ele no grupo.
As tardes sem nihongô passaram pro acordeão, e junto uma turma de orfeão do grupo, prá aproveitar a G.ka no piano, eu e Cezário de oito baixos, que tocava d'ouvido, certa vez de montaria eu descia um paraná, tico tico no fubá, e outros do popular.
Como o dito diz, a cada cantança segue uma bestialidade.
Na vila à beira trem, na noite da festa da padroeira, um dos pegados prá criar do seu J. topou co' Ad. trepado na G.ka, pelada, na casinha do poço d' água.
Seu J. e dona M. chamaram o pai do Ad. que já tinha 15 anos, e ameaçaram dar parte.
Ad. jurou que não tinha posto nada, só encostado. E o pai do Ad, que era cascalhador da estrada de rodagem,atirou a primeira pedra, pediu transferencia, cataram as tralhas e sumiram da vila.
Dona M. nem esperou o ano, pegou a G.ka e foi prá bem longe.
Eu e Cezário, tentamos continuar no acordeão, ele d'ouvido, eu de pauta, parei até o pai vender a 24 baixos.
A bolsa de apostas, quantos dentes de ouro tinha o Mané crescia, era pião, bolinha de gude americana, figurinha carimbada das difíceis dos álbuns ebal, estilingue, tinha até espingarda picapau.
Eu já tava com oito anos, quase, e quando o Mané vinha fazer compra corria prá despachar, só prá ver se dava calcular os dentes, na nuvem de fumaça, certeza só com especialista.
Pai, tô com dor de dente! ô yoshôzinho, pega o trem amanhã de manhã, vai no Yoja-san.
Na sala d'espera tinha uns moldes de dentaduras, contei recontei medi anotei, pelas minhas contas 18 a 20. Yoja san escavou uma cárie, botou chumaço tintado de vermelho de cheiro doce, aí cuspi, e perguntei, já veio aqui o S. Arakaki? os dentes, foram postos aqui, ou no Japão?quantos são?
Yoja san não conhecia o Boca, achava que foi lá, por que?
Quero ganhar um bolão!
Riu, se é do modo como falou,chute 19!
arigatô e peguei o trem das 10, 19, dentada de dentista!
A euforia beirou monotonia, até que uma rádio deu " violaram uma sepultura prá roubar uns dentes de ouro e jóias! nem morto descansa mais".
Seu Durvalino maquinou a esparrela e quando Mané apareceu na venda, nem pestanejou : ô Mané Boca Rica ! cê não escutou na rádio, não? cê não pode rir, e abrir a boca nem prá fumar, Mané!
ladrão mata ocê, só prá roubar os dentes de ouro!
Garantido, né? Mané só ri aqui, né? no bira Mané shabe tudu gente bom, né?
As gargalhadas correram o Mané da venda, nunca mais se viu o homem.
N. san trazia a lista, pagava a dinheiro, eu e pai sabíamos que a compra era pro Mané pelas caixinhas de Fulgor.
Saturamos o tempo, ele nos satiriza.
A molecada esqueceu do Mané, e retirou os pertences, casados, do bolão.
Eu escreví uma história, onde um avarento amealhava seus tostões e fincava dentes de ouro.
Quando a arcada não cabia mais, passou a fraturar ossos e trocar por platina. Aos estertores da morte, quase, prenunciada, a mulher manda o primogênito, selar o cavalo mais rápido, galopar à cidade, em busca do serralheiro, e do açougueiro.
Mãe assustou, yôshô! abunai ( perigoso ) né? se o Mané fica sabendo?
Tá, mãe, vou tocar fogo na história.
Nós passamos pro ginásio no trem das onze, maior alegria, na sede municipal. Eu, Tico e Cezário pulávamos do trem andando, fazíamos pose prás meninas e pegávamos o cavalo de ferro à unha, quando o bicho já tava galopado.
Paulo, dos N. nem era tanto dos nossos, nem tanto de ossamu e seus primos filhos da ponte que partiu. A solidariedade era quando a gente tinha que cortar o cabelo, perder o trem e o basculante da prefeitura.
Paulo usava quase escovinha, eu de topete à Presley, de puxado no pente empastado de glostora.
Aí, só esperar o onibus, andar mais 4 kms eu, 8 o Paulo, conversando no gutural e monossílabos e monocórdios.
Um incidente co' meu pai me levou a ir estudar fora, num tio, rufaram os anos de bumbo, mais dois anos subi do litoral pro planalto de sampa, mas essa é outra história.
Lá por 81, reví N.san. yoshôzinho, genki (saúde) né? e Paulo, onde anda?
Pauro forumo enjenero, non aruma empurego, firuma chama para comberusá, baxa cabeça non fara nada, cabeça baxa,shua basutante, non pasha no enterevisuta.
montô fishina de cosutura, cusutura denturu de caja, né?
que pena, né N.san !
Garantido, né? nosu faraba yoshôzinho fara basutante, ruim né?
gomen ( perdão) né! miyó fará, ki non fará,né?
E Arakaki san, onde anda?
Borutô no Nihon! medo de raduron matá, robá dente de oruro! non riu masu, yoshôzinho! keredita que mané non riu masú?
sayonara, N.san ! fala prá Paulo casar cuma faladeira de primeira, quem sabe ele aprende.
E 27 anos após, a intolerância d’alguns japas com burajirujins, hoje sei, é até perdoável.
Vai se saber o que Mané praguejou na volta, que lá no Burajiru nem rir pode, nem mostrar dente de ouro, ladrão mata...

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